O Sangue é mais espesso que a água
Não posso deixar de pensar que talvez me divertisse bastante se rumasse a Sul, mas o sangue é mais espesso que a água, e o Norte corre-me nas veias, agitado, como correm as águas do Tinhela em Fevereiro.
Assim sendo não olho para trás e digo que sim, “claro que passo o fim-de-ano contigo Mamã”, e não me permito outros prazeres alternativos.
Baldo-me da parte da tarde e lanço-me na A1 como se cada quilómetro de asfalto fosse uma página de um livro qualquer que se lê na diagonal.
De passagem na Invicta aproveito para parar naquele Restaurante em frente à Estação de Campanhã, onde o meu Pai me levava – há tantos anos atrás – e compro uma Broa de Avintes.
Depois aventuro-me na A4 até à Estação de Serviço de Penafiel e faço o já costumeiro charme à menina Marta, simpatia gratuita e atrevida que a fazem corar, que a fazem sorrir envergonhada e sonhar com os lugares distantes de que lhe falo, para onde vou, de onde venho, porque estou ali… É o Platão em mim que se revela, envergonhado também.
Passo a portagem e subo o Marão correndo todos os riscos inerentes ao IP4 enquanto me distraio com o termóstato luminoso no centro do tablier.
Depois vem o vale da Terra Quente, as luzes da Cidade nas montanhas cujos caminhos mal conheço tal como o homem do NetCafé que não sabe que eu tomo sempre um copo de água com a minha bica.
Só mais um esforço, 30 quilómetros de deserto escuro e outros tantos por entre montes e vales…
Chego ao fundo, ao fim da estrada, e apodera-se de mim aquela serenidade que já me vicia a alma, a paisagem de mil formatos e cores, que me entra nos olhos e me desperta enfim a Interferência Sensitiva. Que me dá vida.
Antes de entrar em Stª Eugénia subo ao monte da Capela de Stª Bárbara e vejo as estrelas, vejo-as mesmo através das nuvens porque ficaram gravadas para sempre no meu olhar.
Por fim chego à casa de perpianho em frente à Igreja, subo as escadas de pedra e do alto da varanda digo olá ao “Visconde Camillo” que agita a cauda eufórico, como um leão a quem tirei o espinho da pata no dia em que o adoptei.
Empurro a porta, a lareira está acesa seguramente, depois olho em direcção da cozinha antiga e vejo-a, sentada ao lume, provavelmente a ler qualquer coisa, levanta-se num ápice que esconde a idade e aproxima-se de mim, linda, a razão destas minhas lágrimas escondidas… Digo um “Olá Mamã” sem som, silencioso, porque ela me lê os lábios tão bem como se ouvisse a minha voz, porque ela me deu à luz em Lisboa, mas sabe que o Norte me corre nas veias.