Era uma vez uma passageira do mundo chamada Regnée.
Regnée alimentava um blog onde escrevia sobre tudo o que lhe corria na alma. Todos os dias, levantava-se de manhã, lavava a cara em frente ao espelho mal iluminado, vestia-se com cores inspiradas pelo dia que lhe entrava pela janela, e depois de trautear um Post no pensamento, sentava-se em frente ao seu PC e escrevia, escrevia como todos os dias, sobre si, sobre os outros, sobre personagens que a sua imaginação construía, sobre a vida que tinha e sobre vida que gostava de ter. A sua escrita transmitia um misto de serenidade e beleza, por vezes queixume, por vezes pura perturbação, mas quase sempre algo... inovador, repetitivamente inovador.
Contudo Regnée não gostava de exposição, mas por estar exposta fazia por proteger o que era seu, a sua criação, as suas palavras dispostas originalmente numa composição de estilo único, mesmo quando o conteúdo não era mais do que o sexo dos seus anjos. O seu Blog até podia passar despercebido no anonimato da Blogsfera que ela não se mostraria importar com isso. O gozo estava em escrever, não em ser lida. Ou pelo menos era essa a mensagem que passava... O seu nome, Regnée, ilustrava múltiplas passagens dos suportes do seu blog, como uma incontrolável vontade de auto-promoção que gritasse ao mundo
“-Estou aqui!”.
Era a sua marca pessoal.
Paralelamente a gostar de escrever no seu Blog, Regnée gostava de comboios, gostava muito de comboios e frequentemente viajava de comboio em comboio, como quem salta de página em página num livro mágico que todos os dias tem um contéudo diferente. Assim eram os comboios de Regnée, cada paragem tinha sempre uma paisagem diferente do dia anterior.
O blog de Regnée espelhava a sua visão muito própria da vida, no seu blog – qual estação de comboio – ela era o Chefe da Estação, e a sua Estação estava decorada a preceito: Tinha motivos floreados num fundo branco sem cor, onde as letras, enfeitadas a preto de vários tons, alternavam com quadros de belas imagens tiradas por Máquinas Fotográficas que Regnée nunca tinha utilizado, como se a Sala de Espera fosse uma Galeria de Arte de outros artistas e o Buffet servisse paixões inventadas para acompanhar o mata-bicho dos passageiros.
Naquele ramal, ao longo do Rio, a Estação de comboios de Regnée era a mais bonita e imaculada.
Regnée gostava tanto de comboios e de viajar de comboio que até transcreveu um horário dos comboios para o seu blog. Como ninguém sabia bem em que comboio andava Regnée, aquele horário dava uma boa ideia dos comboios que Regnée apanhava mais vezes, e ela, para não se perder, atribuiu um link a cada comboio, como se cada link fosse o bilhete de ida e volta colectivo. Assim era o horário de comboios de Regnée, um amontoado de bilhetes obliterados, que por sua vez estavam dispostos sobre um registo de todos os passageiros que por lá passavam. Regnée gostava de monitorizar todos os seus passageiros, e mantinha um registo elaborado, extenso e fiável, mesmo sem que os seus passageiros se apercebessem disso...
Um belo dia, um outro passageiro do mundo cruzou-se com Regnée. Este era diferente, exuberante e flamejante, espalhafatoso onde ela era discreta, irreverente onde ela era delicada, mas sistemático onde ela era dispersa e sóbrio onde ela se perdia a divagar, enfim, era invisível onde ela brilhava incandescente.
Chamava-se Oscar, Oscar Fink e também gostava de viajar. Viajava de bicicleta, de carro, ou montado num burro; e, embora constasse que tinha uma predilecção por viajar de avião, isso era falso; Oscar gostava era de viajar no seu cavalo de metal e fogo que só ele conseguia montar, como um cavaleiro invisível. O que mais lhe importava era a viagem que fazia, o destino para onde ia, e não o meio de transporte em que seguia. Só não gostava de andar de patins (mas isso é outra história).
Assim, nas suas viagens, Oscar acabou um dia por passar na Estação de Comboios de Regnée, e leu as paredes e gostou dos quadros e até teve vontade de conhecer mais, mas seguiu viagem...
Quis o destino que um belo dia, outro belo dia, o comboio em que seguia Regnée viesse por sua vez passar na Estação de Oscar. Reconheceram-se e, a partir desse dia, Regnée e Oscar passaram a cruzar-se frequentemente de comboio. Quais disciplinados vizinhos de plataforma de embarque, entretiam-se mutuamente com gestos de larga cortesia e acenos sorridentes a cada passagem pela mesma paragem, pela mesma estação. Aparentemente terão desenvolvido uma certa cumplicidade um como o outro, um coisa imperceptível, um quase desejo, um quase nada... Só eles sabem.
Mas Oscar apercebeu-se que tal como Regnée, também ele gostava de andar de comboio, do “pouca-terra, pouca-terra” do comboio, das paragens, e das salas de espera das outras Estações, onde os Chefes de Estação dessas paragens, como pedintes, mendigam por passageiros com berros estridentes nos seus altifalantes, e distribuem horários para os seus comboios como se fossem gotinhas de chuva molha-parvos.
Há estações onde uma gotinha apenas chega e sobra para encharcar qualquer parvo que ande à chuva e noutras Estações há tantos passageiros que ninguém sabe realmente quem é o Chefe da Estação. Há estações desertas, estações abandonadas e estações onde só passam rápidos. Há estações que parecem que nos entram pela casa dentro e outras que parecem ser a casa do Chefe da Estação, há estações para todos os gostos, umas grandes, elaboradas e barulhentas, outras pequenas, simples e discretas. Há estações nacionais, internacionais e até algumas que parecem intergalácticas e transcendentais.
Oscar andava meio perdido nesse novo mundo dos comboios, saltava de linha em cantoneira sem saber em que paragem o seu comboio ia parar, sem saber se o Chefe da Estação onde parava tinha um umbigo maior que a alma ou se encontrava passageiros conhecidos nessa imensidão de salas de espera decoradas à pincelada de rato e teclado. Felizmente, Oscar era quase invisível, mas mesmo assim, ao fim de algum tempo, não renovou o passe, e fechou a sua Estação.
Durante uns tempos, Oscar esqueceu os comboios e só viajou no seu cavalo de metal, Tejo acima e Sado abaixo, um Ferry para lá e uma auto-estrada para cá. Por vezes o seu cavalo de metal mais parecia “cavá-lo” de Troia e até arrancava alcatrão, mas Oscar nunca passava esse pontão sem olhar para trás e sem pensar em Regnée... Como estaria a sua Estação de comboios? Teria flores? Reproduções de painéis de azulejos? Uma locomotiva nova?
Passou mais algum tempo, Oscar seguiu a sua vida (e que rica que ela é) até a um dia em que resolveu construír um novo Blog, uma nova Estação de comboios! Mas... Comboios porquê? Os comboios vivem presos aos carris, o que Oscar gostava mesmo era de viajar, por isso decidiu construír uma Estação diferente, que mais parecia um aeroporto (enfim, um aeródromo).
Oscar estava contente por voltar a viajar dessa maneira, e viajou muito, mas sempre pelo ar... Lá do alto distinguia as linhas que os carris do comboio desenhavam no mapa da terra e sobrevoava estações por onde antes já tinha passado de comboio.
Dinâmico, Oscar decidiu um outro belo dia que era tempo de aterrar e voltar a andar de comboio. Aterrou, despiu o seu uniforme de piloto, comprou um bilhete, mas quando ia a entrar para o comboio apercebeu-se que não sabia onde ir, que estações visitar? Perdido, deambulou de Estação em Estação sem muita vontade sequer de se apear do comboio. Começava a arrepender-se de ter aterrado... Mas Oscar sabia que só alguém que vive pelo gosto dos comboios lhe poderia valer e então decidiu parar na Estação de Comboios de Regnée.
A estação estava lindíssima, tal como ele imaginava que estivesse. Regnée tinha evoluído enquanto Chefe daquela Estação, tinha crescido e até lá havia agora uma bilheteira e um quiosque e livros de bolso para entreter os passageiros. Regnée tinha prosperado, e mesmo parecendo já Chefe de uma mega-estação internacional, Oscar ainda via nela os traços da Estação original, imaculada, belíssima, quase angelical, quase austera...
Era evidente que Oscar precisava de ter um Horário dos comboios para não andar à deriva, para não se perder e para não perder tempo em estações de comboio que mais parecem estações de metro, escuras e abafadas.
Oscar lembrou-se do amontoado de bilhetes obliterados que Regnée tinha na sua estação, no seu blog, e lembrou-se que embora parecessem ali estar abandonados talvez alguns ainda fossem válidos, e outros talvez servissem para ir até estações que ele ainda não conhecia, estações bonitas, simpáticas e bem decoradas, estações onde o mais importante seja a satisfação do passageiro e não o ego do Chefe da Estação.
Oscar consultou o Horário dos comboios de Regnée, decorou-o, e depois reproduziu-o na sua Estação.
Agora Oscar já não se sentia completamente perdido, tinha um ponto de partida para fazer um Horário de Comboios à medida da sua estação.
Mas gradualmente o entusiasmo de ter um Horário esvaneceu-se, afinal aquilo não era um amontoado de bilhetes obliterados que Regnée tinha abandonados a um canto, para seu espanto, Oscar apercebeu-se que se tratava também de uma criação de Regnée, e ela não se coibira de lho dizer, uma qualquer obra prima acerrimamente defendável como qualquer outra obra prima da estação de Regnée.
Oscar terá sucumbido à preguiça e hoje viaja ao crava, recorrendo à memória de algumas Estações que conhece e gosta de visitar, mas sem bilhete pré-comprado.
O amontoado de bilhetes obliterados de Regnée lá continua, esculpido no seu branco imaculado, tal como uma estatueta a ornamentar a entrada de uma vivenda suburbana, e tal como continua amontoado o Horário de comboios da estação de Oscar, do Aerodromo, do Blog de Oscar. Que não é mais do que isso, um Horário de comboios em que cada linha é um link para uma estação diferente, um serviço público sem pretenções de ser uma projecção das suas viagens, simplesmente uma lista de blogs que de qualquer forma raramente tem tempo para ler...
Fim
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