O velocímetro marcava 120 Km/h. Com os pneus a chiar em cada curva, o velho Datsun 180B mostrava que em tempos tinha sido topo de gama da marca Nipónica, e ainda respondia a cada mudança de regime com o mesmo vigor de um carro recente. O barulho certinho do motor - tipo relógio suíço - era agora o rosnar de bastantes cavalos soltos no alcatrão, ou então era o tubo de escape a acusar a idade, mesmo assim ia a portar-se bem. Era um carro relativamente antigo, mas era o meu carro, não me cansava de dizer que o tinha comprado com meu o dinheiro, o dinheiro do meu trabalho.
Naquele momento estava entusiasmado demais com a ideia de ir estudar para Inglaterra. O pequeno problema mecânico que curiosamente me obrigava a ir em excesso de velocidade não veio alterar em nada a minha determinação. Concentrado na condução desportiva entretinha-me a imaginar filmes: Estava numa missão secreta e o
maus vinham atrás de mim, tinha que
lá chegar antes que
eles me agarrassem… Filme de acção, à Portuguesa claro, e isto ao som da banda sonora de uma cassete qualquer.
“Deixa-te de brincadeiras pá” pensei para mim. Sentia o suor a encharcar-me as costas da camisa e a adrenalina a invadir-me as veias. Sabia que se abrandasse, o motor afogava, ia-se abaixo e não voltava a pegar... arriscava-me a perder o Ferry, mas se continuasse assim arriscava-me a mandar um estoiro contra uma parede.
“Que raio de altura para isto me acontecer”, o Ferry partia de Santander dentro de 3 horas e eu ainda estava a uns bons 100 Kms de distância. O meu bilhete de ida simples para Plymouth não era reembolsável… Não havia condições para que algo corresse mal, afinal de contas tinha planeado esta aventura com 2 anos de antecedência, desde 93… Ops, tarde demais, já estava a correr mal… Tinha um problema qualquer no carburador duplo que o único mecânico espanhol que consegui arrancar da siesta não soube arranjar:
“-Mira tio, tienes un problema en el carburador…”, dizia-me ele sem fazer um esforço para eu perceber.
"Tienes que hacer eso y aquillo para poderes seguir viajo”. E eu só lhe abanava que sim com a cabeça
“-Meu, não percebo nada do que me estás a dizer, afinal consegues arranjar isto ou não?”-Espanhol mitra, não arranjou foi nada. Agora só andava em regime alto, ou seja no mínimo a 120 Km/h, em 3ª ou em 4ª velocidade, o que com um motor 1800cc num carro de 1974 fazia aumentar o consumo substancialmente. Não tinha outro remédio senão ir a abrir, se não queimasse o excesso de gasolina que entrava no carburador o motor engasgava e afogava…
Nos últimos quilómetros, apesar de algumas ultrapassagens à má fila e vários excessos de velocidade em zonas residenciais, as coisas até tinham corrido bem, contudo as montanhas que se começavam a desenhar no horizonte não eram nada prometedoras. Para piorar as coisas, a via rápida de duas faixas transformou-se em estrada nacional e as curvas começaram a ser mais fechadas. Como ia depressa demais para poder olhar para o mapa e como não podia parar, resolvi continuar naquela estrada que de qualquer forma ia em direcção ao Norte. Passei por algumas povoações quase desertas.
“Está a espanholada toda a fazer a sesta”, pensei com ar de gozo. Acho que até passei por um jipe da Guardia Civil emboscado num arbusto, mas eles ou também estavam a dormir ou nem sequer me viram passar.
“Este carro é muita fruta”.
Lá continuei absorto nos meus pensamentos, a tentar não stressar muito com a velocidade e ainda entretido na minha fantasia da 7a Arte: Agora era eu o
mau, um
bandido-gentleman do género do Michael Caine, tinha roubado a virtude à Infanta do Juan Carlos -
que por acaso é feia como as botas da tropa - e tinha a bófia espanhola à perna…
A estrada tornava-se cada vez mais estreita e as curvas cada vez mais apertadas. Com as montanhas vieram subidas feitas a espremer a 4ª com toques de embraiagem e descidas a aguentar em 3ª às 7000 rotações… ia depressa demais para aquela estrada, para aquelas curvas, sobretudo com um carro de tracção atrás e carregadíssimo. Varri 5 ou 6 curvas em derrapagem controlada tipo rally dos anos 70, isso assustou-me porque na
contra-brecagem quase perdia o controlo do carro e já me estava a ver espetado de frente numa árvore, ou num camião, ou a mandar um vôo duma falésia abaixo… Cada vez que a traseira fugia o carro punha-se a dançar de um lado para o outro até eu o conseguir endireitar outra vez, mas ainda me aguentei uns bons 10 Quilómetros aquela velocidade.
De repente, surgidos do meio da paisagem verde que desfilava em cada janela começaram a aparecer vários sinais de obras, de perigo e de reduza a 20. Quando dou por mim estou numa fila de carros, num local de trânsito alternado onde só passava uma faixa de cada vez. Tive que abrandar para dar passagem a quem vinha no sentido contrário … Pus o carro em ponto morto e mantive o motor às 4000 rotações ao mesmo tempo que travava com o pé esquerdo, consegui não bloquear as rodas. Parei mas continuei a acelerar para manter a rotação, nem que fosse preciso depois meter uma primeirada e arrancar à
Hill Street.
Passados uns intermináveis 30 segundos de rotação excessiva, o motor fez dois ou três engasgos e parou com um barulho parecido ao de um aspirador entupido. Nesse instante o sinal ficou verde, os carros que lá estavam parados arrancaram e eu fiquei sozinho no calor da estrada. Tentei pegar o motor, mas sem sucesso. Com o ar aberto ou com o ar fechado mas só consegui enfraquecer a bateria. Um camião passou por mim a businar e achei melhor levar o carro para a berma, engatei a primeira, dei à chave e o carro avançou aos solavancos para a beira da estrada.
Um silêncio de tarde de fim de Verão invadiu o ar agora empestado com o cheiro de gasolina, apeteceu-me pegar fogo aquilo tudo.
“Mierda, e agora?”Estava no meio do népias, rodeado de montes de todos os lados, floresta densa e um calor do caraças, ainda por cima em Espanha! Se ao menos isto me tivesse acontecido enquanto estava em Portugal tinha-me orientado em menos de 15 minutos…
Já estava a ver o filme a andar para trás, e o Ferry a ir-se embora sem mim.
“Não estou a acreditar nisto”.
Tinha que me desenrascar de uma maneira qualquer, deixar ali o carro com as minhas coisas todas e seguir viagem é que não podia ser, adiar era impossível porque tinha que lá estar dai a 3 dias, além disso pagar outro bilhete estava fora de questão.
Estas ponderações foram todas muito rápidas. Montei o triângulo de sinalização de perigo e fui coloca-lo a 50 passos do carro, depois descarreguei a bicicleta de montanha, que tinha confiscado à minha irmã, e montei-lhe as rodas, estava a transpirar em bica e o suor escorria-me para os olhos. Em seguida tranquei as portas com gestos mecânicos, acendi um cigarro e comecei a pedalar pela berma de terra batida numa de que tinha que me mexer para resolver o problema, que já não se estava a mostrar nada fácil de resolver.
Como não tinha visto nenhuma bomba de gasolina ou oficina nos últimos quilómetros, pensei que não devia estar muito longe de qualquer coisa desse género.
Sempre constatei que no meio do meu azar há um elemento de sorte, mas não posso contar muito com isso para não perder a genica, contudo sei que tudo é possível, tudo pode acontecer, sempre foi assim…Não tinha ainda feito nem 1 quilómetro que, ao virar da primeira curva, lá estava uma espécie de estalagem, meio escondida pelas árvores. Era uma daquelas tentativas de Turismo de Habitação subsidiadas com guita da União Europeia e que só servem de desculpa para tentar promover o turismo doméstico. Há bastantes assim em Portugal. Aquela estava aberta.
“Ainda mexe!”Atirei com a bicicleta para um canto e entrei lá para dentro. O bar estava vazio, atrás do balcão estava um espanhol a polir copos, perguntei-lhe se tinha telefone e completei a frase com o gesto correspondente, ele fez que sim com a cabeça e apontou para uma cabine de moedas esculpida numa parede. Com ar descontraído e descarado pedi-lhe para me trocar libras por pesetas, como se aquele fosse um lugar indicado para câmbios no meio da montanha, ele disse que sim. O câmbio estava inflacionado para turista mas não me senti em posição de discutir.
Telefonei para o número da minha seguradora tal como estava impresso na carta verde. Expliquei a situação à jovem assistente que me atendeu e ela disse-me que me podiam mandar um reboque mas que demorava pelo menos 2 horas a chegar, além disso só me levava até Santander e não até ao meu destino final, ao contrário do que dizia no contrato do seguro.
Conseguia imaginá-la, sentada no meio de tantas outras como ela, com auscultadores nas orelhas e microfone tipo astronauta, à procura das teclas no teclado e a seguir à regra as instruções do protocolo de atendimento.
A solução que ela me apresentou não me servia porque uma vez chegando a Inglaterra o meu destino final ainda ficava a uns 200 quilómetros de distância. Insisti, expliquei cordialmente que o meu destino não era nem Santander nem Plymouth, mas sem resultado. A cabine fez um estalido e um beep e tive que introduzir a minha última moeda de 100 pesetas. Não estava a ver a conversa a cair para o meu lado, exaltei-me, chamei-lhe incompetente, disse-lhe que deixasse estar, que eu me desenrascava, que lhe telefonava de Inglaterra a dizer qual era o meu destino final e que ela já ia ver para que serve a opção de Assistência em Viagem, desliguei o telefone bruscamente e virei-me para o empregado do bar que estava a olhar para mim com ar assustado e cara de parvo:
“-Pá, camarada, hablas português? Preciso dum reboque, el coche é grupo, no anda…” A cara de parvo acentuou-se, insisti.
“Ah usted no conprende? Então… dá-me aí um canêto que eu faço-te um desenho!”A partir dai tudo andou mais depressa. Ele compreendeu a minha situação e mostrou-se mesmo bastante prestável, disse que tratava disso e fez um telefonema, depois disse-me para esperar, o tempo de tomar um café e de apreciar a paisagem. Passado um bocado já estava a ajudar um mecânico a espreitar para dentro do capôt, este percebia português.
“-Deixe lá amigo, não tente arranjar o carro, leve-me é para Santander antes que eu perca o barco.”Ajudei-o a puxar o carro para cima do reboque e concordei com o preço que ele pediu. Durante a viagem o tipo falou pelos cotovelos, que conhece Portugal e mais não sei o quê do Eusébio e do Salazar e da mulher dele.
Era um homem de 50 e poucos anos, mais baixo que eu, barrigudo, careca, originário da Galiza mas que tinha casado com uma mulher Basca… Se estivesse calado até passava por Tuga.
Chegamos ao Porto de Santander meia hora antes da partida do Ferry, paguei o reboque em Libras ao tal câmbio ajustado para turista e o mecânico foi-se embora, depois dirigi-me à bilheteira e ao Check in, registei o bilhete para embarcar o carro e preparei-me para esperar. Tinham-me dito que, como tinha que entrar de empurrão, tinha que esperar até entrarem os carros todos.
“Bacâno, em Inglaterra sou o primeiro a sair.”Não me importei. Voltei para o carro que estava na zona de espera e aproveitei para tentar pegar o motor… Para minha surpresa pegou à primeira, o que até fazia sentido porque a gasolina que tinha afogado o carburador já tinha evaporado. Dei duas ou três aceleradelas leves para ouvir o motor cantar – afinadíssimo – mas reparei pelo retrovisor que estava a fazer uma nuvem de fumo, escuro, enorme, que só serviu para chamar a atenção. O carro, enorme, preto e cheio de pó, só por si já era bandeiroso e eu ainda me pus a dar nas vistas daquela maneira, que cromo. Desliguei a chave de ignição e o motor foi-se abaixo com o tal barulho de aspirador entupido. Tentei fazer um ar natural e discreto enquanto os outros carros continuavam a embarcar.
Passados 20 minutos um membro da tripulação fez-me sinal para avançar, e passei uma das maiores vergonhas da minha vida ao ter que empurrar o carro para dentro do Ferry, com os outros passageiros todos, nos vários convés, a aplaudirem o meu esforço. Quando cheguei lá dentro despachei-me a mudar de roupa, dentro do carro, para não ser reconhecido como o gajo da camisa verde e do carro de colecção que não anda, e passei a ser o gajo da pinta brava, todo vestido de preto, e que não se sabe lá muito bem de onde vem.
Fiz-me a eles.