Foi num dia qualquer perto do Verão de 1994, ìa a caminho do Casino Estoril ao fim do dia, um dia de Junho onde o Sol perdurava no horizonte até à hora do jantar. Pelo caminho, a pé junto ao mar, perguntava a mim próprio se iria conseguir aguentar aquilo muito mais tempo: faltar às últimas aulas do dia para ir para o Casino... Felizmente os professores estavam a par da minha situação e não me marcavam faltas de presença. Essa era uma das muitas diferenças entre o turno da noite e o turno do dia; Os professores viam os alunos como adultos feitos e não como meros estudantes tipicamente irresponsaveis. Nessa altura, em 94, eu estava perto de completar 24 anos.
Que raio de ideia a minha aquela de me inscrever outra vez no liceu, no turno da noite, para fazer melhorias de notas em disciplinas de um 12º ano que eu já tinha passado, e com média de 13 valores.
És um g’anda maluco” diziam-me alguns amigos, provavelmente por não me verem a acompanha-los nos primeiros comboios da manhã, a caminho de Lisboa, a caminho de alguma Universidade ou Instituto privado onde com os meus 13 Valores me poderia ter inscrito num curso qualquer, um desses cursos que acrescentam um “Dr.” ao nome da pessoa ao fim de determinada quantia paga em propinas. Mas eu não me tinha sequer candidatado à Universidade...
Ao aproximar-me do Casino, subindo a rua ofegante no sentido do trafego, pelo lado direito dos jardins, antecipava outra noite cheia de fumo, de luzes brilhantes e sons repetitivos e quase ensurdecedores.
Sem pensar no dinheiro que trazia comigo naquele momento fiz contas ao dinheiro que tinha já acumulado. Mais uns mêses daquilo e com alguma sorte do meu lado (coisa que pouco tenho) conseguiria vir a acumular ainda mais dinheiro, precisava de mais dinheiro, muito mais...
Aproximei-me da porta, apaguei a beata do cigarro com a ponta do pé e entrei determinado e confiante, como se estivesse a entrar em minha própria casa. Fiz um aceno ao porteiro e um cumprimento por “tu” ao jovem agente da PSP que em criança tinha sido meu colega de escola primária e que agora, adulto, fazia serviço de plantão naquela entrada do Casino Estoril.
Lá dentro, seguindo por um complexo caminho de tuneis que a maioria das pessoas desconheçe, dirigi-me ao vestiário e de seguida, já em passo de quase-corrida e a apertar atrás das costas os laços do avental, passei “invisivel” pela Cozinha e entrei na Copa meio acocorado para não ser visto a chegar mais de uma hora atrasado ao serviço. Pisquei o olho ao Chefe e agarrei-me de unhas e dentes aos pratos escaldantes que se empilhavam à saída da enormemente industrial máquina de lavar loiça do Casino Estoril. O Chefe também estava a par da minha situação, não era cúmplice dos meus atrasos sistemáticos, simplesmente teria visto em mim mais do que outro “copeiro casual” que por ali passava, sem contrato, sem Segurança Social, sem noção de responsabilidade, sem perspectivas de vida... Teria visto em mim algo que a modéstia não me obriga agora a descrever, mas que era seguramente algo me fazia ser assiduo sem ser pontual, eficiente sem ser obrigado, aceitando executar as tarefas mais indesejadas pelos outros e sem resmungar, trabalhar nas folgas, fazer horas sem ser pago, sei lá...
Talvêz fosse por isso que ele, o Chefe de uma equipa de mais de 30 Assistentes da Cozinha do Casino Estoril, ele próprio me picava o cartão de ponto às 18 Horas, a hora definida para entrada de pessoal, sabendo perfeitamente que por causa das aulas eu só chegaria perto da 20:00h... O Chefe fazia isso por mim, e fazia-o porque sabia que seria eu a marcar o cartão de ponto dele, à saída, às 4 da manhã, quando ele às 2h ou às vezes até antes, já se tinha pirado para casa...
O Chefe, tal como os professores, estava a par da minha situação, sabia que era importante para mim poder conciliar as aulas com o trabalho... Não sabia se eu me tinha matriculado na Universidade ou não, e provavelmente pouco se importaria com isso... Aquele pequeno homem de origem transmontana como eu, que nem sei se tinha a 4ª classe, e que tinha feito carreira a limpar os restos de comida que os outros deixavam nos pratos, viu em mim alguém que lhe inspirava confiança... Nunca lhe disse e ele nunca me perguntou, mas eu estava ali a juntar dinheiro para ir para a Universidade. Sim, tinha-me candidatado, mas não em Lisboa, nem sequer em Portugal. Nesse ano de 94 desde Janeiro que eu estava matriculado numa Universidade em Inglaterra para começar em 95 e se possivel com uma média de 12º mais capaz, e mesmo assim, matriculado e com o bilhete comprado, ninguém acreditou em mim, nem a minha própria familia... (Acho que só acreditaram quando receberam o primeiro postal).
Lembro-me, como se fosse hoje, que durante mêses a fio só eu acreditei em mim, e isso, seja em 94 a fazer melhorias de nota (fiquei com média de 12º ano de 16 valores) ou seja hoje em 2007 (com duas licenciaturas e uma pós-graduação), é o que mais me importa, que eu seja capaz de acreditar em mim, mesmo quando mais ninguém acredita.
Mas, porque o traquejo não é só feito de sucessos e também é feito de trambolhões, reconheço que ser-se o único a acreditar em si mesmo é díficil... Sim, é bem mais fácil quando mais alguém acredita em nós, seja quem for, tráz algum alento, aquela pancadinha nas costas o dizer "Força, vai em frente!"
Afinal de contas, não estamos sózinhos no mundo, mesmo que às vezes assim o pareça. Por isso, quem não ajudar, ao menos que saia da frente que eu quero passar! Porque eu acredito em mim, contra ventos e marés, contra Davids e Golias, sózinho ou acompanhado... Eu acredito em mim! É uma batalha diária...