terça-feira, maio 10, 2005

Só o nome é fictício.

Alva já não sabia mais o que fazer, sentia que o destino lhe escapava das mãos, lhe fugia. Durante aquele segundo e meio lembrou com ternura alguns episódios de quando estava grávida da filha, nesses 9 meses o amor inundou-lhe o coração de tal forma que toda ela exalava felicidade. Valeram uma vida inteira esses meses, e ela viveu-os outra vez naquele breve instante.
Um segundo e meio foi quanto tempo levou a cair, a força do murro fora mais do que suficiente para lhe derrubar o corpo por terra, o corpo frágil e debilitado pelo cancro e pelas sucessivas operações.
Bateu com a cabeça no degrau da escada, o sangue não jorrou – antes tivesses jorrado –, não perdeu os sentidos mas também não sentiu mais os murros e pontapés que o Marido e a filha, agora com 19 anos, lhe continuavam a dar. Instintivamente enrolou o corpo em forma fetal, defensiva… Ouvia os urros e os gritos e os insultos e o som das pancadas no seu corpo, mas não sentia, já não sentia.
Quando se fartaram de lhe bater afastaram-se, deixaram-na ali prostrada, em lágrimas de silêncio, para lá do desespero que tinha deixado de sentir, o desespero que anteriormente a fizera reagir.
Arrastou-se para o telefone e chamou a GNR outra vez, o caso já era conhecido.
Nos meses seguintes não lhe foi diagnosticado o traumatismo craniano, apresentou-se de novo ao trabalho quando as pisaduras já só precisavam de um toque de base para se esconderem. A empresa era o seu refúgio, a segunda família.
Durante dois meses escondeu o degradar lento do seu corpo, entupida em analgésicos, com dores e cefaleias que a faziam cerrar os dentes até ranger. Aos poucos começou a perder a visão, piorava a cada dia mas continuava a atender o telefone com toda a deferência que o protocolo da empresa exigia.
Lembro-me que me cumprimentava amavelmente todos os dias de manhã quando eu chegava ao trabalho. “Bom dia Doutor”, “Olá Doutor, está bom?”, “Ó Dr. Francisco, ainda bem que o vejo, tenho aqui um fax para si”. Por vezes, perguntava-me pela minha mota, outras vezes estava tão compenetrada a gerir várias chamadas ao mesmo tempo que nem dava por mim a entrar, simplesmente acenava com a cabeça quando eu do alto da escada lhe dizia em surdina “Bom dia Dª Alva”.
Alva morreu esta manhã, estava de baixa há várias semanas e eu só hoje fiquei a saber esta história.
Mas o que poderia ter eu feito se soubesse de antemão?

Resta-me poder denúnciar, neste meu espaço, que Alva foi vítima de Violência Doméstica.

Linha de apoio à vítima de Violência Doméstica: 800 202 148

Mais informação sobre Violência Doméstica em Portugal poderá ser encontrada aqui, aqui, aqui, aqui e ainda aqui, para além de consultas aleatórias no Google.

ADENDA
Existem inúmeras formas de ajudar a combater este flagelo: Denunciá-lo é uma delas, porque ficar calado é ser cumplice, e ficar inerte é ser culpado também.
Um estudo recente da Universidade do minho (ver links acima) revelou que 1 em 4 pessoas são vítimas de violência doméstica. Seguramente alguém que nós conhecemos, um vizinho, um amigo, um colega de escola ou de trabalho, alguém perto de nós, quem sabe até nós próprios.
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2 passageiros clandestinos:

Anonymous Anónimo chamou a hospedeira e disse:

Adoro este blog , mas confesso que nunca sei onde comentar!
De facto existe muito mais violencia domestica quer seja fisica ou psicologica , do que se imagina , nao sao so as mulheres que sao alvo dela , os homens tambem sao ...
Bom post

3:09 da tarde  
Anonymous Anónimo chamou a hospedeira e disse:

Uma bonita homenagem à DªAlva: Existem tantas por aí...

11:09 da manhã  

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