Auto-retrato
As covinhas das bochechas são agora dois riscos que, embora já me tenham dito que são sexy, começam a estar demasiado alinhados com as 3 ruguinhas de expressão que imprimem um sorriso falso nos cantos dos meus olhos. Não incomoda muito o meu narcisismo já que até serve para compensar o nariz aquilino, estragado por ter sido partido vezes de mais, mas que mesmo parecendo uma batata ainda completa o formato simétrico e aveludado dos lábios, da minha boca, a tal boca das maravilhas.
Por cima de mim, a lâmpada de 40 wts chega e sobra para iluminar minusculos reflexos brancos mal semeados nas minhas temporas, pequenos cabelos brancos de que me orgulho estupidamente e sem saber porquê. Nitidamente dentro de 10 anos terei o cabelo grizalho como um tal de Amadeu Eduardo, que morreu há uns anos e mandava nisto tudo.
O barulho da máquina-de-barbear incomoda-me, quase tanto quanto me incomoda questionar-me se ainda tenho idade para andar com esta argola pendurada na orelha... Felizmente a unica tatuagem que tenho é na alma.
Olho para os braços musculados que contraio automaticamente a cada gesto e com uma ligeira rotação do tronco mostro a uma audiencia invisivel que os dorsais fazem um “V” e ligam os peitorais minimamente bem definidos numa mancha de pilosidade uniformemente distribuida e que nunca me pareceu ser demasiada.
Afasto da cabeça o pensamento que já estive com mulheres com menos mãmas que eu...
Mais abaixo, enquanto sacudo os pêlos cortados das lâminas, tomo consciencia que o six-pack abdominal ainda está todo lá, definido como uma embalagem de ½ duzia de ovos, mas meio escondido pelos 3 kilos a mais que me fazem agora usar calças 42 em vez dos 40 que usava nem há 5 anos atrás. Sem me perder com a idolatração phaelica que tinha na puberdade volto a passar a máquina pela pele da garganta, contornando a maçã de adão, e pelo meio do som da música que vem da sala ensaio a voz grave que se perde no eco dos azulejos côr-de-burro-quando-foge.
A sombra que projecto na parede atrás de mim chama a minha atenção e lembro o meu antigo barbeiro a dizer-me que tenho o craneo bem feito para usar cabelo curto.
Tenho é o craneo cheio Ó Sô Joaquim, cheio a abarrotar...
Olho-me no espelho e vejo que sou um reflexo de mim, é tudo o que sou, e apago a luz.
Já vestido penso nestas palavras que escrevo e caio na realidade.
Eu não sou só aquilo que vejo no espelho, também sou o que sinto, o que acredito, e o que faço. Não tenho duvidas de mim, do que já fiz, que por muito que seja, não é nada perto do que ainda quero fazer. Eu também sou o que digo ...e se hoje a minha palavra vale ouro, foi porque dei tudo o que tinha quando só tinha a minha palavra para dar.
A palavra tem o peso que tem, tem o peso que lhe é dado quando é verdade e o peso inverso quando é mentira. Mas paradoxalmente com uma palavra apenas se promove a verdade, e com uma palavra apenas se perdoa a mentira.
Eu sei que por ter dúvidas da verdade não vou saber perdoar a mentira, e vou morrer um bocadinho todos os dias, porque eu não sou só o que mostro, também sou o que sinto, e na dúvida, o que sinto morrerá comigo um bocadinho por dia também e a escolha que faço, faço-o da melhor maneira que sei, mas já não sei bem o que estou a escolher, como se escolhesse sem saber.
As palavras são por vezes tudo o que tenho, e eu faço o que digo e digo o que faço, e quando as palavras que existem não me chegam, eu crio palavras novas, re-invento a gramática para me fazer entender.
Hoje não sei conjugar o verbo “Saber”, nem no modo Passado, nem no modo Presente, e muito menos no modo Futuro. Só sei conjugar o verbo no modo Intemporal, o modo da Dúvida.
Eu sei
Que tu sabes
Que eu sei.
Também sei
Que tu me sabes dizer
Aquilo que eu sei.
Mas eu não sei
Se tu sabes,
Que eu não sei nada
E tu nada sabes,
Se não me souberes dizer
Aquilo que tu não sabes
Se eu sei
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